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Relações Étnico-raciais e linguagem na Educação Infantil: construção da identidade a partir da competência linguística

Relações Étnico-raciais e linguagem na Educação Infantil: construção da identidade a partir da competência linguística

Relações étnico-raciais é um assunto que precisa estar inserido no "currículo" da Educação Infantil e não ser tratado apenas como um tema transversal. Conheça este projeto que foi implantado em 2018 e que se tornou parte integrante do meu trabalho com as crianças da Pré-escola.

QUESTÕES DO PROJETO

Atendendo aos objetivos do Projeto Pedagógico Anual do EDI, “A Diversidade Cultural das Regiões Brasileiras: um enfoque na Educação Infantil”, estou desenvolvendo com a turma da Pré-escola I, um estudo sobre Etnia. Porém percebi nas relações entre as crianças que algumas sentem dificuldade para se expressar e as que são falantes acabam por dominar as situações deixando as demais sempre à margem das atividades. Sendo assim, senti necessidade de trabalhar com a questão da construção do sentimento de pertencimento de grupo a partir da valorização da individualidade e construção da identidade por meio da linguagem. Uma questão fundamental é fazer com que as crianças superem suas limitações expressando suas ideias e sentimentos por meio de diversas linguagens e gêneros textuais, demonstrando valorização das próprias características e respeitando as características do outro, possibilitando, desde cedo, o enfrentamento de práticas de racismo e outros tipos de preconceitos.

OBJETO DE ESTUDO

O objeto de estudo é fundamentalmente a questão da linguagem como meio de socialização e empoderamento da criança tendo as relações étnico-raciais como campo para o estudo. Sendo assim, procura investigar em que medida a competência linguística pode contribuir na socialização da criança e construção da identidade, enriquecendo nossas práticas e as relações entre as crianças.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Levei em consideração, ao fazer esse recorte, o fato de que “a formação da identidade da criança acontece por meio da socialização e das relações estabelecidas com “o outro” construindo, assim, sua autoimagem e autoconceito” (Bento, 2012). “Logo, é de extrema necessidade incorporar o discurso da diferença na Educação Infantil não como desvio, mas como algo que enriquece nossas práticas e as relações entre as crianças, possibilitando, desde cedo, o enfrentamento de práticas de racismo, a construção de posturas mais abertas às diferenças e, consequentemente, a construção de uma sociedade mais plural”. (ABRAMOWICZ et al., 2006). Para estudar as questões relativas à linguagem busquei fundamentação teórica em KOCK; ELIAS e BAJRD. Isso se deu porque levei em consideração um ponto fundamental do modelo reggiano que é a organização do trabalho educativo baseado na prática da pesquisa e no rever constante de projetos e atitudes. Também busquei embasamento teórico em SMITH, Alice Paige; CRAFT, Anna e colaboradores, na obra "O Desenvolvimento da prática reflexiva na Educação Infantil". Nessa obra, a autora relata os resultados de um projeto intitulado Researching Effective Pedagogy in the Early Years (REPEY), no qual os pesquisadores constataram que:

... os ambientes que particularmente encorajavam aquilo que a equipe de pesquisa chamava de "pensamento compartilhado e sustentado", entre os adultos e as crianças, possibilitavam a estas um maior progresso cognitivo, linguístico, social e comportamental. O que o trabalho demonstrou foi que esse tipo de envolvimento entre adultos e crianças depende de os adultos observarem sensivelmente o que as crianças estão fazendo e o modo como exploram o mundo, de maneira que as discussões envolvam uma profundidade e um significado para todos os envolvidos. (...) Refletir sobre como as crianças interagem e sobre como nós interagimos com elas, é parte vital disso. Pensar juntos pode ser visto como outra maneira de falar sobre um pensamento compartilhado, sustentado e ligado integralmente a uma abordagem reflexiva da prática, como um elemento importante de um trabalho eficaz nos primeiros anos de aprendizagem. (pp. 34 e 35)

Nessa perspectiva, as oportunidades de aprendizagem oferecidas por esse recorte estão relacionadas aos Campos de Experiências sugeridos pela BNCC, possibilitando-me observar o desenvolvimento dos objetivos relacionados a tais Campos em uma perspectiva transdisciplinar.

METODOLOGIA

 Apesar de ter objetivos e etapas previamente definidos, foi no dia a dia, dialogando com as crianças, que o estudo sobre Etnia foi tomando forma. O Projeto Pedagógico Anual do EDI está se desenvolvendo ao longo do corrente ano com previsão para terminar em novembro. Entretanto, há um outro projeto integrado a este, que desenvolvo com minhas turmas, que é “Biblioteca de crianças para crianças”. Trata-se de um projeto permanente que teve início em 2016. O objetivo é o de que as crianças produzam todo tipo de texto (narrativas, poesias, receitas etc.), criando livrinhos que colocamos na estante da nossa sala, em um cantinho especial. Os textos surgem a partir de situações diversas: estudos, experiências, contação de histórias ou de histórias que elas mesmas inventam. Portanto, é um projeto que atende a qualquer temática e se integra perfeitamente aos projetos pedagógicos anuais. Ou seja, os projetos se complementam. Com isso, as crianças se sentem autoras, protagonistas de suas histórias e passam a compreender a verdadeira função da linguagem, criando hipóteses de escrita e superando suas dificuldades para se expressarem oralmente. Ou seja, há o empoderamento da criança no sentido de que elas consigam estabelecer relações mais saudáveis com seus pares. Exercendo a autoria, elas têm acesso não só aos livros de autores desconhecidos para elas, mas também aos seus próprios livros e aos livros que foram criados pelas crianças dos anos anteriores. Tal projeto se integra ao projeto anual do EDI no sentido de que contribui para elevar a autoestima das crianças e também no sentido de que a linguagem é considerada a primeira forma de socialização da criança e, portanto, fundamental para a construção de sua identidade. Sendo assim, todos os estudos resultam em produção textual.

O domínio da leitura não pode ser isolado das práticas linguísticas, e essas não podem ser dissociadas das práticas semióticas e comunicativas. É evidente que falar bem melhora a prática da escrita e esta, por sua vez, as competências de leitura. Podemos dizer que praticando a produção de textos, se aprende não apenas a escrever, mas também se cresce em termos do domínio da língua escrita, que inclui as práticas de leitura. (BAJARD, p.60)

A primeira etapa foi despertar o interesse das crianças. Para tal, coloquei um mapa mundi na parede enquanto elas dormiam. Quando elas acordaram fiquei observando qual seria a reação delas. Assim que elas acordaram perceberam o mapa e foram apontando para algum ponto do mapa dizendo que elas moravam ali. Logo percebi que algumas sabiam que se tratava de um mapa e que este servia para se localizar. Porém, elas não sabiam localizar o país onde moram. A indicação que elas faziam era aleatória. Então, expliquei que se tratava de um mapa do mundo e localizei para elas o Brasil. Em seguida apresentei o Globo Terrestre. Elas ficaram curiosas e fizeram diversas perguntas: “Onde fica o Brasil?”, “Onde fica a Rússia?”, “Onde tem gelo?” E assim fomos conversando a respeito do Planeta Terra. “Vamos fazer uma viagem pelo Brasil?”, perguntei. As crianças ficaram entusiasmadas e aproveitei para perguntar o que elas achavam que iriam ver nessa “viagem”. Algumas perguntaram se a viagem seria de verdade. Respondi que iríamos brincar de viajar. Elas gostaram da ideia. Então falei que a primeira coisa que precisaríamos saber é para onde iríamos. A fim de que elas pudessem visualizar as regiões, coloquei na parede um TNT azul e disse que era o mar. Fiz um mapa do Brasil bem grande, com recorte das regiões, em forma de quebra-cabeça. As crianças montaram o mapa e colamos no TNT azul. A cada região estudada as crianças colam bolinhas de papel crepom no mapa.

A segunda etapa foi “viajar” pelas regiões. Ao conhecerem as regiões, as crianças foram percebendo intuitivamente a diversidade étnico-racial existente em nosso país. Aproveitando essa percepção das crianças e a vontade delas de conversarem sobre o assunto, enfatizei nos estudos a diversidade cultural existente em nosso país e até mesmo em nossa sala. Olhar para elas mesmas com esse olhar mais aguçado abriu caminho para outras leituras e para outras discussões: “Vocês acham que somos todos iguais ou diferentes?” - perguntei. “Somos diferentes, responderam! “E isso é bom ou ruim?” - perguntei. E assim o diálogo foi se estabelecendo. Após muitas conversas, leituras, músicas e danças sobre a diversidade cultural, levei para a sala recortes de cartolina, revistas, pedaços de lã, fita durex e fitas de várias cores. Então propus às crianças que montassem carinhas para representar como éramos diferentes uns dos outros. Inspiradas nas músicas e nas leituras, as crianças soltaram a imaginação e a criatividade desabrochou de forma muito natural e divertida. Percebi que algumas crianças se representavam ao montar as carinhas, outras representavam algum amiguinho da sala ou algum parente; algumas escolhiam os acessórios que eu levei, outras preferiram desenhar e outras já preferiram desenhar e utilizar os acessórios. Finalmente as carinhas ficaram prontas e todas as crianças queriam ver a carinha que o colega tinha montado. Para socializar as carinhas fiz uma rodinha com as crianças e à medida que iam apresentando suas carinhas elas falavam sobre suas escolhas e quem elas tinham representado. Foi nesse momento que percebi que algumas crianças já revelavam mudanças em seu comportamento no sentido de reconhecer e valorizar as suas próprias características e a dos colegas e também no desenvolvimento da linguagem. É indiscutível afirmar que a melhor manifestação de aprendizagem é expressa em atitudes.

Para introduzir a terceira etapa, apresentei para a turma a diversidade da nossa população: os nativos; os portugueses; os negros africanos; os imigrantes europeus e os imigrantes asiáticos. Para tal, utilizei livros, vídeos, desenhos, revistas e outros meios. A partir da diversidade de sons, ritmos, sabores, cores e costumes as crianças compreenderam que todos somos da raça humana e por isso somos todos semelhantes. Porém, cada povo tem sua cultura, hábitos, crenças, tradições, língua, comportamento e é a isso que chamamos de Etnia.  Essa percepção abriu campo para que as crianças se expressassem de várias formas favorecendo, principalmente, a expressão corporal e a expressão de sentimentos por meio da linguagem oral, o que era muito difícil, inicialmente, para algumas crianças. Com o desenvolvimento do Projeto percebi uma evolução no desenho das crianças. Antes dos estudos as crianças se desenhavam sem uma forma definida. Era como se elas não tivessem consciência de suas próprias características ou não aceitavam suas próprias características.  Ao longo dos estudos as crianças começaram a se retratar por meio de desenhos cada vez mais fiéis às suas próprias características físicas, sinalizando alguma mudança na construção de sua autoimagem e autoconceito. Achei o momento oportuno para aprofundar o conceito de Etnia e trabalhar a construção da identidade. Levando em consideração que “a formação da identidade da criança acontece por meio da socialização e das relações estabelecidas com o outro” (BENTO, 2012), levei para a sala vários livros, vídeos e recortes de gravuras que retratavam povos diferentes a fim de que as crianças se identificassem ou não com eles. Criei um nome para cada personagem e fiz uma descrição de suas características físicas, hábitos, costumes etc. Em seguida solicitei que as crianças se desenhassem. Depois que terminaram os desenhos, chamei cada criança e solicitei que falasse sobre ela (suas características físicas, suas preferências alimentares, brincadeiras favoritas, etc.). Fui ouvindo cada uma individualmente e fazendo o registro, por escrito, de tudo o que cada uma falava. Assim surgiu o livro ETNIA. Foi interessante perceber como algumas crianças, inicialmente, não sabiam se descrever. Após todos os registros, reli o texto para a turma e algumas crianças fizeram pequenas alterações no texto. Ao produzirem suas próprias histórias as crianças perceberam diferenças e semelhanças entre elas e o “outro”, construindo, assim, suas identidades e se constituindo enquanto sujeitos.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Muito mais do que simples atividades realizadas em áreas do saber distintas ou em disciplinas fragmentadas o Projeto vem se desenvolvendo em Campos de Experiências, pois a criança só aprende por meio da vivência e quando o que lhe é proposto faz sentido por fazer parte do seu cotidiano e de seu interesse. Nessa perspectiva os resultados parciais se aproximam muito dos objetivos relativos a cada Campo de Experiências:

  • No campo "O eu, o outro e o nós": as crianças, gradativamente, estão comunicando suas ideias e sentimentos, elevando sua autoestima, demonstrando valorização das próprias habilidades e características; respeitando e valorizando as habilidades e características dos outros também, criando, dessa forma, o sentimento de pertencimento de grupo.
  • No campo "Corpo, gestos e movimentos": as crianças vêm demonstrando com o corpo formas diversificadas de expressão de sentimentos, sensações e emoções. Isso vem acontecendo, principalmente, no cotidiano da sala de aula em brincadeiras, dança e música”.
  • No campo "Traços, sons, cores e formas": as crianças estão, cada vez mais, se expressando livremente por meio de desenho, pintura, colagem, dobradura e escultura, criando produções bidimensionais e tridimensionais. Isso se deu, especialmente, quando confeccionaram as carinhas e em muitas outras atividades.
  • No campo “Escuta, fala, pensamento e imaginação”: as crianças vêm demonstrando um significativo desenvolvimento na competência linguística, produzindo suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa.

Segundo Romão (2001), “é necessário que o educador compreenda as crianças como indivíduos que pertencem a culturas coletivas, mas sem deixar de observar que cada criança possui sua individualidade dentro desta coletividade, atentando para aspectos emocionais, cognitivos, físicos e culturais”. Portanto, os resultados estão muito próximos dos objetivos e isso se deu pelo fato de as atividades propostas surgirem de uma necessidade real e da escuta do que as crianças desejavam realmente fazer e saber. Ou seja, sem desprezar o que foi planejado foi possível atender aos interesses das crianças, despertando nelas o desejo de participar ativamente das atividades. Os meios utilizados para avaliar foram a observação e o registro, tanto escrito quanto em vídeos e fotografias. Ao observar o entusiasmo dos pais nas culminâncias bimestrais me despertou para o fato de incluir mais as famílias durante o processo e não apenas nas culminâncias. Atualmente os familiares estão envolvidos em vários outros projetos.

O projeto ainda está em andamento, mas os resultados parciais já apontam para a compreensão de que o desenvolvimento cognitivo das crianças não está relacionado à quantidade de atividades e muito menos às diferenças étnicos-raciais. Sabemos que a aprendizagem é um processo complexo e que envolve uma gama de fatores. Porém, é inegável que a elevada autoestima é um dos fatores primordiais para que a aprendizagem ocorra. Também é possível estabelecer uma relação da elevada autoestima com um maior domínio da competência linguística.  Ao se sentirem valorizadas e respeitadas as crianças se sentem seguras, criando o sentimento de pertencimento de grupo, fortalecendo, assim, a individualidade tão necessária para a construção do conhecimento. Tomar consciência de si (consciência positiva) e do outro é primordial para que a criança se constitua enquanto sujeito e vença barreiras socialmente impostas pelas diferenças étnicos-raciais, colaborando, consequentemente, para a construção de uma sociedade mais plural.

REFERÊNCIAS

ABRAMOWICZ, Anete; SILVÉRIO, Valter Roberto; OLIVEIRA, Fabiana; TEBET, Gabriela Guarnieri de Campos. Trabalhando a diferença na educação infantil. São Paulo: Moderna, 2006.

BAJARD, Élie. Caminhos da Escrita: espaços da aprendizagem. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.

BENTO, Maria Aparecida Silva. A identidade racial em crianças pequenas. In: BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, 2012.

MALAGUZZI, Loris (et AL). La educacion infantil em Reggio Emilia. Editora Octaedro, 2009.

SMITH, Alice Paige; CRAFT, Anna e colaboradores; tradução Vinícius Figueira. O Desenvolvimento da prática reflexiva na Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2010.

KOCH, Ingedore Villaça. Ler e Escrever: estratégias de produção textual. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2010.

VYGOTSKY, l.S. Pensamento e Linguagem. Tradução Jefferson Luiz Camargo, 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Rio de Janeiro, 2018

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